quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Um redemoinho puxa o outro - Diário do Nordeste - 28/10/2010

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia (...) que é a Festa do Saci. (...) É maravilhoso ver o Saci, aglutinando amigos de lendas (...), mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem.

A coordenadora da Universidade Popular, da Prefeitura Municipal de Passo Fundo, Maria Augusta D´Arienzo, me conta que a partir de uma das conversas que tivemos no ano passado, por ocasião da Jornada Literária, aquele agradável e dinâmico município gaúcho realizará no próximo sábado (30) a sua primeira Festa do Saci. E como não poderia ser diferente na terra da professora Tânia Rösing e da Universidade de Passo Fundo, a sacizisse vai acontecer à base de troca-troca de livros.

Da Cidade de Goiás a educadora Lúcia Agostini me transmite a vibração de mais uma Sacyzada, ocorrida na Vila Esperança durante a Semana de Estudos e Vivências da Cultura Brasileira (14 a 18/09). Não faltaram causos e batucadas de Sacy nesse território livre que um dia o poeta Gilberto Mendonça Teles conceituou de "saciologia goiana". A agitadora pedagógico-cultural Maria Inez do Espírito Santo, escreve do Rio de Janeiro para dizer que o Saci da Festa da Comunidade, que ela fazia com motivação inclusiva nos anos 1980, na Escola Viva de Petrópolis, se fará presente no Ceará, no dia 31.

A Sociedade de Observadores de Saci (Sosaci) segue firme em sua festa, realizada na cidade de São Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo; evento incorporado ao calendário turístico da cidade. Débora Kikuti, observadora de Saci em Guarulhos, anima uma festa que, entre músicas, rodas de histórias e oficina de boneco de Saci, conta com atividades multimídias "folcloricantes". Isso mesmo, eles usam graciosamente o verbo "folcloricar" para fazer integração de linguagens.

Como é de conhecimento comum, a locomoção rápida do Saci é feita em redemoinhos; e, como nas contações de histórias, um redemoinho puxa o outro. Por isso a Festa do Saci se constrói na concertação das diferenças, agregando uma brincadeira daqui, uma travessura dali, revelando o poder que temos para eleger e praticar o nosso modo de ser, enquanto sociedade miscigenada de um país continental.

A popularização da Festa do Saci, sobretudo no dia 31 de outubro, mesmo dia do "Halloween" estadunidense - uma das ideias traquinas do jornalista Mouzar Benedito - tem gerado uma participação elevada pela liberdade de cada lugar poder fazer a festa de acordo com seus desejos e condições. Como não há fórmula, nem hierarquias, a Festa do Saci não se limita a uma única emoção, nem a um só público; é uma festa da diversidade e da pluralidade.

Procurei disseminar esse construtivismo inter-regional em meu livro/CD "A Festa do Saci" (Cortez Editora) e experienciar algumas sequências recreativas em uma festa de condomínio que há três anos realizamos em Fortaleza com familiares e amigos. Essa brincadeira já resultou em um musical do Instituto Canarinho, adaptado pelo dramaturgo Rafael Martins e dirigido por Marconi Basílio; em duas monografias de graduação e no trabalho desenvolvido pelo facilitador alemão Thomas Semrau para a Formação Continuada dos Educadores Sociais, do programa "O Ceará Cresce Brincando", que trata o brincar como um direito.

Um exemplo evidente da mutualidade na construção da Festa do Saci ocorreu no dia 20 passado, em uma conversa que tive em Messejana com brinquedistas desse programa realizado pela Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Ceará (Apdmce) e Unicef, e executado pelo Instituto Stela Naspolini: Socorro e Joselda (Assaré), Ângela e Lilia (Beberibe), Leopoldo e Roberto (Brejo Santo), Lúcia e Adriele (Cruz), Karolina e Rosa (Itarema), Amirles e Karla (Horizonte), Márcia e Darlene (Pedra Branca), Ledian e Evânia (Porteiras), Verônica e Rosa Maria (Quixeramobim), Maria da Glória e Alaíde (Sobral), Adriana (Tejuçuoca) e Jordeana e Elenilda (Viçosa do Ceará).

Ao falar que na Festa do Saci cada criança deve levar a guloseima que mais gosta para oferecer aos participantes, as educadoras sociais colocaram a dificuldade dessa prática em algumas comunidades. Imediatamente encontramos alternativas para essa contribuição, como por exemplo, a de levar o avô ou a mãe para contar uma história na roda. O importante é fugir do estigma de carente, possibilitando que todos sintam que têm algo a compartilhar.

De Independência, onde eu nasci, recebo da ONG História Viva a notícia de que a Festa do Saci está acontecendo em algumas escolas desde a segunda-feira passada (25) e se estenderá até amanhã (29), por onde tem circulado um boneco do Saci feito pelo artista plástico DIM. A brincadeira tem base em um projeto pedagógico e recreativo preparado pela professora Maria Irandir Bezerra Sabóia, no qual estão sugeridas atividades de recorte e colagem, caça-palavras, boca de forno e cabra-cega, na perspectiva do Saci como mito ecológico e cultural.

O redemoinho continua puxando o outro também nos três dias de Festa do Saci que a Aldeia Luz realizará na Biblioteca Pública e na Casa de Juvenal Galeno, entre os dias três e cinco de novembro, dentro do calendário oficial do Departamento de Patrimônio Imaterial da Secult. Como nos anos anteriores, as ações sacizísticas contarão com teatro de boneco, oficina de desenho, distribuição de gorros e camisetas, cordéis com histórias de Saci e uma palestra com o jornalista Vladimir Sacchetta, o saciólogo que me iniciou nessas e em outras reflexões lobatianas.

Quem acompanha meu trabalho sabe o tanto de valor que atribuo a essa ideia contemporânea de liberdade que é a Festa do Saci. A liberdade de ser o que somos, de ser uma sociedade tomando consciência de si. Criei dois conceitos como contribuição para esse debate: a) Sacizada é um ajuntamento alegre, divertido, crítico e contemplativo de pessoas e mitos populares; e b) Saciologia é uma ciência humana que reflete os saberes e as crenças resultantes da relação da cultura mestiça brasileira com a natureza, por meio das leis da imaginação.

É maravilhoso ver um personagem como o Saci, aglutinando amigos de lendas para a sua festa, mas é mais animador ainda observar cada criança inventando o seu próprio personagem e enchendo a festa de seres que não existem. O grande luxo de uma Festa do Saci é aprender a brincar com ele "sem ele", exercitando a imaginação na sua forma mais espontânea, no limite da criatividade do brincante.

O Robson Moreira, presidente da Sosaci, me contou meses atrás em uma conversa na calçada do Patbanda, na Vila Madalena, em São Paulo, que ensinou seus netos a pegar Saci, só para brincar e depois soltar. Segundo ele, a gente não vê quando o Saci passa em nossa frente porque o danado aproveita exatamente o momento em que piscamos os olhos para passar. Então, ele inventou de rapidamente fechar à mão diante dos olhos no momento em que a pálpebra fecha e pegou um Saci. Passou a dica para a criançada e tem muito moleque pegando Saci para brincar.

No domingo (31) vai ter homenagem ao Dia do Saci também no Centro Cultural Dragão do Mar, às 16 horas, dentro da programação "Pintando e Brincando no Dragão". É o redemoinho passando, enquanto aprendemos a fazer a festa uns com os outros. Uma das maiores dificuldades que tínhamos para fazer a Festa do Saci em nosso condomínio era a de conseguir copo biodegradável.

Até que comentando isso com a Mônica Yoshizato, mestranda em ciência ambiental na USP, ela sugeriu que solicitássemos às crianças que levassem seus próprios copos. Depois ela me disse que inspirada na nossa Festa do Saci havia proposto para a escola do filho dela o "amigo secreto sustentável" (com brinquedo usado) para o Natal. Deu certo cá e deu certo lá... um redemoinho puxa o outro.






quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O boato na democracia - Diário do Nordeste - 21/10/2010

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto

O uso de boato em campanhas políticas não é novidade. Aliás, não existe política sem boato. Mas deve existir um limite ético para a utilização do boato como propaganda eleitoral. O segundo turno da eleição para presidente coloca esse paroxismo em pauta. O que ler nos boatos? O que eles dizem? Quais seus significados para a democracia? O que será feito da boataria depois do dia 31 de outubro de 2010? A resposta a essas perguntas é um desafio posto ao eleitor que não aceita ser manipulado por esse velho artifício da fragilidade humana.

O grave no boato eleitoral é que muitas vezes suas armadilhas não podem ser desarmadas a tempo e, em caso de as acusações se revelarem falsas, as urnas já terão anunciado seu veredicto. Esse fato de não haver tempo hábil para o eleitor saber antes de votar se o seu conteúdo tem origem em verdade ou mentira aumenta a criticidade do apelo ao boato em campanhas eleitorais.

O pesquisador francês Jean-Noël Kapferer, uma das principais referências mundiais no campo da gestão de marcas, diz em seu livro "Boatos - o mais antigo mídia do mundo" (Forense Universitária, RJ, 1993), que não distingue cultos e não cultos como propagadores de boatos. "Poderíamos ser levados a acreditar que o boato é vulgar e que não encontra nenhum crédito junto às pessoas pretensamente a par dos mecanismos e desenvolvimento da vida nacional, e que acompanham mais ou menos o debate público. Ora, não acontece nada disso" (p. 91). Um dos argumentos de Kapferer é que boa parte da "intelligentsia" acredita também em boatos, porque tem cada vez mais uma visão parcial e específica do mundo.

Como fenômeno plantado na crença das pessoas, o boato carrega sempre mensagens ocultas, protegidas por conteúdos aparentes. Ele está presente no cotidiano de todas as esferas da vida social. Quando o boato parte de fora da esfera institucional da campanha, quando ele parte da militância, ele é aceitável por criar uma necessidade de resposta por parte das autoridades; agora, quando o boato parte de alguém que está formalmente em campanha, ele perde o caráter de espontaneidade para assumir um perfil manipulador.

Que dizer: se o boato é gerado por fonte anônima ele é um recurso movedor de algumas verdades ocultas, mas se ele é produzido nos laboratórios da propaganda e da publicidade eleitoral, ele passa a cumprir uma função de proselitismo para mobilizar atenções contra seu adversário. Neste caso, Krapferer entende o boato como uma indústria de conversão às suas próprias teses: "quanto mais ele amplia o círculo de adeptos maior é o sentimento de que se está diante do verdadeiro" (p. 49).

A recorrência ao boato oferece muitas vantagens na guerra política. Uma delas é que o candidato delega a tarefa da calúnia a voluntários e permanece por trás das cortinas. "O boato permite levar ao conhecimento público assuntos que a tradição política proíbe que se mencione abertamente" (p. 196). Assim, a priorização do boato no estratagema das campanhas para a desestabilização de adversários passa a ser praticada porque a opinião pública tende a se apegar mais a impressões do que a fatos.

O boato é um grande instrumento de difamação que atravanca a experiência democrática. Ao tentar convencer, ele induz o eleitor ao erro, por sedução moral. Circula afastando o eleitor da atração por propostas, projetos, visões e sentido de destino, enquanto promove dúvidas e indignações: nada garante que um boato seja ou não verdadeiro. O problema é como a combinação de informação verificada e boato se traduz nas urnas.

A opção pelo boato como tática de campanha é uma revelação de baixo espírito democrático. O apelo ao "ouvi-dizer" pode ter efeito bumerangue quando percebido pelo eleitor, atingindo a reputação de quem lança o boato. Ninguém em sã consciência almeja um governante afeito a fofocas. É uma questão de defesa psicológica, que age quando o boato passa a preponderar descaradamente em campanhas políticas, deixando de relatar o que interessa para espalhar o que dizem por aí, desligando a palavra e a imagem do fato que significam.

Uma parte das conversas fantasiosas de eleitores é natural do nosso comportamento e não tem maldade, por estar associada à novelização do cotidiano e da vida. Uma outra parte, pelo contrário, revela mordacidade, por ser propaganda de desonra e afirmação de preconceitos, construída a partir de blefe dos tipos ideais.

Quem apela para a fofoca e o boato como peça de campanha demonstra temor e incapacidade de propor algo que possa ser compreendido pelo eleitor como importante para sua comunidade e para o País. É na tentativa de justificar o que não tem a acrescentar que o político boateiro recorre a esse tipo de expediente, procurando esconder-se na (in) consistência de suposições (in) fundadas em (in) formações de motivos tendenciosos. Esse chapéu cabe também na cabeça dos eleitores que se prestam ao papel de espalhadores voluntários de boatos.

O boato profissional sinaliza para a fragilidade do espírito democrático de quem dele se vale para conseguir da maioria um decreto de corrosão do adversário. O pior é que o boato funciona para tornar realistas hipóteses ameaçadoras que, em muitas circunstâncias, empurram o eleitor a assumir a voz da propaganda política, sem perceber que ao fazer isso muitas vezes está acusando a própria consciência de preferir um ou outro candidato.

A priorização do boato é antidemocrática porque atinge o equilíbrio psicossocial dos votantes ao deixar o eleitor orgulhoso do seu poder de desdenhar de alguém mais poderoso do que ele, no momento em que esse alguém precisa de voto para continuar no poder. Entusiasmado com esse brio passageiro, o eleitor acaba esquecendo que depois da eleição o boato pode simplesmente desaparecer. "O pós-boato interessa pouco. Tudo parece em ordem, e a vida recomeça como antes. A tempestade passou e com a volta do tempo bom tudo se esquece, nada aconteceu. O boato? Que boato?" (p. 101).

Embora depois da eleição o sumiço do boato seja enganador, pois sempre ficam alguns resquícios para campanhas futuras, essa síntese de Kapferer vai bem ao encontro do que se costuma chamar de memória curta. O recuo silencioso do pós-boato produz algumas suposições: "Não se comenta mais porque não se acredita mais no boato, ou porque ainda se acredita, mas não fica bem se falar dele ou, enfim, porque mesmo se acreditando nele, não há mais condição para se falar dele" (p. 101).

Qualquer dessas conjecturas leva o eleitor atento ou frustrado a perceber que a coragem de fofocar e de espalhar boatos é uma manifestação de covardia, uma pisada na própria sombra. Atingido pela atração de mercado negro que tem o boato, o eleitor muitas vezes só vai descobrir tempos depois que foi abduzido pelos rumores e que deixou de mobilizar suas energias em favor do que realmente acredita.

Um grande problema gerado pelo boato excessivo em campanhas eleitorais é a perda da confiança do eleitor nas lideranças políticas e nas fontes de informação. Muitos eleitores bombardeados por toda sorte de promessas, percebem no boato um instrumento de liberdade, uma forma de comunicação que não pode ser controlada pelos diversos poderes e se sente gratificado com essa válvula de escape. Ao fazer isso, aposta na ambiguidade como determinação de preferências políticas e eleitorais, o que é muito ruim para a evolução da nossa democracia empírica.








sexta-feira, 15 de outubro de 2010

A reforma do pensamento - Diário do Nordeste - 14/10/2010


A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura (...) A autora sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um novo humanismo

No início do século XX, salvo as traduções e adaptações dos contos e aventuras de teor fantasioso, escritas para adultos, a literatura para crianças no Brasil tinha como função transmitir valores morais, cívicos e nacionalistas no ensino primário. Era coisa de sala de aula. O valor da imaginação criadora, indispensável para o desenvolvimento da personalidade integral, era muito pouco considerado. Adulto era para dizer o que a criança deveria aprender e à criança cabia o esforço de assimilar as instruções recebidas.

Estamos no início do século XXI e a literatura infantil brasileira passa por uma ameaça de regressão, com a proliferação do chamado livro paradidático, aquele que diz o que a criança deve entender, roubando a sua liberdade de interpretação, que é o grande diferencial da literatura. As bibliotecas estão cheias dessas publicações funcionais, com seus enredos sem alma, criados especificamente para subsidiar aspectos didático-pedagógicos.

A criança de hoje, como a de um século atrás, está novamente exposta a uma relação prioritariamente didática com o livro e com a leitura. Há cem anos ainda não tínhamos a compreensão que a psicologia e a neurociência nos deram quanto à importância da leitura como meio para a organização da percepção do mundo e preparação para interferir na realidade. Insistir nesse equívoco é decretar a morte da vontade de ler e admitir a indolência da pedagogia.

Diante desse impasse de caráter cultural e educacional, a educadora mineira Angelina M. F. Castro propõe que, à luz das teorias textuais contemporâneas e das tecnologias da inteligência, a busca por saídas comece nos recursos literários e pedagógicos do Sítio do Picapau Amarelo. Em seu livro "Educação, ética e estética na obra infantil de Monteiro Lobato" (Tradição Planalto, Belo Horizonte, 2010), ela mostra as razões que a levam a acreditar nessa força de inteligência coletiva e solidária. O Sítio, neste caso, está além dos paradidáticos porque é uma literatura que atua como mediadora do processo de aprendizagem, oferecendo à criança a oportunidade de pensar por si mesma.

A autora associa a transversalidade da obra infantil lobatiana à proposta da revolucionária Escola Nova, pensada por educadores como Anísio Teixeira, que provocou uma mudança radical na educação brasileira dos anos 1920. Naquele momento, no Sítio da Dona Benta, a criança passou a ter voz ativa. Antes, meninas e meninos eram educados para obedecer e se calar diante dos adultos. Com seu livro, Angelina instiga os educadores da atualidade a enfrentarem o desafio da produção de uma nova metodologia educacional que seja também uma nova reforma do pensamento.

Chamar Monteiro Lobato para pensar o futuro mais uma vez é, dentro da abordagem de Angelina Castro, acreditar em uma estética da flexibilização de fronteiras entre as diferentes áreas do conhecimento, ativando novos recursos cognitivos e promovendo a interação de linguagens, de modo a levar o leitor à descoberta do que lhe parece invisível. A leitura relacional, simultânea e não linear, semelhante ao movimento da mente humana, sempre presente nas histórias do Sítio do Picapau Amarelo, é trabalhada pela autora como uma antecipação do que nas últimas décadas convencionou-se chamar de hipertexto.

Essa vinculação do alcance da obra literária infantil de Lobato às modernas teorias de rede e suas múltiplas possibilidades de leitura, pensamento e produção de saber remete ao entendimento de que as metodologias de leitura se tornem compatíveis com o avanço das ciências humanas, sociais e tecnológicas. A autora argumenta que o Sítio guarda segredos de comunicação que somente hoje, com o computador e todo o ambiente digital, podem ser identificados. Sem contar com sua inclinação para a moderna Teoria da Complexidade, cujos conceitos se contrapõem aos princípios da especialização do conhecimento.

Por isso, e implicitamente atendendo aos perfis da nova infância, ela sugere que a educação se valha mais da vocação lobatiana para a promoção de um "novo humanismo", apto a substituir, na vida pessoal e social, os antivalores do egoísmo social, da competição desmedida, do consumismo, do materialismo e do domínio sobre o outro, pelos valores voltados para o encantamento da vida. Ela lança o desafio aos educadores que, por meio da imaginação, teimem em mudar esse mundo racional e despoetizado.

Angelina Castro realça o papel de Monteiro Lobato como criador das condições para que o leitor restabeleça o elo perdido com o seu eu recôndito. "Talvez seja este o papel da educação: descobrir e trazer à tona a pérola, o potencial que está escondido nos subterrâneos do nosso ser" (p. 24). É nesse terreno fértil que brota a ação literária infantil do autor do Sítio em favor de uma educação crítico-criativa da infância leitora. A atualidade de Lobato é surpreendente. Livros como "A Reforma da Natureza" impressionam pelo que possibilitam de nodos pedagógicos sem, no entanto, cair em paradidatismos.

O caminho para uma educação da sensibilidade passa por uma literatura que torne o leitor apto a dar sentido às próprias experiências. Em vez de dar lição de moral, Monteiro Lobato dava à boneca Emília a missão de tirar o melhor das fábulas, pelo exagero da caricatura, pela reação que a inconveniência produz. Se Américo Pisca-Pisca achava que a natureza só fazia tolices e agia como agem muitos cientistas hoje, que fazem modificações genéticas apenas em nome de resultados econômicos, Emília propõe o caricato em seu plano de reforma, tal como acabar com a situação de só as fêmeas botarem e chocarem ovos.

Ao tratar da conexão dos saberes, Angelina Castro aproxima Edgar Morin de Monteiro Lobato, pelo esforço de ambos, cada qual do seu jeito e no seu tempo, para a construção de uma epistemologia na qual se articulam as diversidades e as oposições, no que apresentam de complementaridade de inter-dependência. Para cada um dos sete saberes que a teoria de Morin propõe para a educação no futuro, a autora dá exemplos de como um a um foi levado a efeito na obra infantil de Lobato.

Se o pensador francês assegura que conhecer dados isolados é insuficiente, o escritor brasileiro coloca a Dona Benta para situar seus relatos no tempo, num lugar, ligando-se ao cotidiano e abrindo espaço para as crianças vivenciarem o conhecimento adquirido por meio de sua criatividade; se Morin postula o entendimento da condição humana, Lobato fustiga essa questão filosófica com literatura transbordante como "Os doze trabalhos de Hércules" e "O Minotauro"; se a teoria de um defende a consciência da identidade terrena através do ensino do respeito ao próximo, a literatura do outro leva a meninada à reflexão e ao pensamento crítico em trabalhos como "A chave do tamanho" e sua denúncia contra a violência da guerra.

Essa parte do livro é muito empolgante. Parece uma peleja entre duas cabeças privilegiadas que resolveram se encontrar em tempos e lugares diferentes. Morin versa sobre a intensificação da imprevisibilidade e os personagens de Lobato agem preparados para o incerto e para as consequências dos seus atos; o sociólogo fala de "ensinar a compreensão" e o escritor traz no Sítio o costume do "aprender juntos"; a teoria de Edgar Morin prima pelo ensino da antropoética e as histórias infantis de Monteiro Lobato refletem em suas páginas a valorização da beleza e da poesia como atributos necessários a uma vida mais consciente, mais plena e prazerosa.




quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Sucessivo como a vida - 7/10/2010 - Diário do Nordeste


A biografia de José Cortez destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil (...) O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram o editor a ser um agitador de ideias e um cidadão orgânico exemplar.


Poucos dias antes da festa de abertura das comemorações dos 30 anos da Cortez Editora, realizada no dia 1º de março de 2010, no TUCA, teatro da PUC/SP, o editor José Cortez comentou comigo que ainda não estava tão confortável com a ideia de ter sua história publicada. Lembrei-lhe de que certa vez ele me disse que gostava do jeito entusiasmado como eu falo dos meus livros e de eu ser um autor que não tem vergonha de vibrar com o que faz. Devolvi-lhe o comentário, com o intuito de reforçar o quão é importante para a sociedade conhecer a vida e a obra de uma pessoa caracterizada por um obstinado espírito realizador, como o dele.

Comentei que a relutância demonstrada por ele é natural, mas isso não deveria inibi-lo de tornar pública a sua trajetória exemplar. A história de José Cortez se mescla com a história da livraria e da editora que levam o seu nome. Por todos esses anos ele não permitiu holofotes voltados para si. Sempre jogou luzes para que o pensamento crítico brasileiro se libertasse das sombras do determinismo colonial. Disse-lhe que já é hora de ele ser visto, de ser homenageado e de desfrutar do respeito conquistado com tanta sensibilidade e garra. Ele fez um gesto de "se é assim" e despediu-se no seu simpático passo puxadinho, mas firme.

O tempo passou e o livro "A saga de um sonhador" (Teresa Sales e Goimar Dantas) está nas livrarias. Conta a história de um ser humano surpreendente. Criado no barro do chão, nas brenhas, Zé de Mizael - como é conhecido na família, que se estende pela comunidade do sítio Santa Rita, município de Currais Novos, no Rio Grande do Norte, onde nasceu - apreendeu traços de uma etiologia cariboca, modelada nos valores do trabalho, da família, da solidariedade e da moral sertaneja, que ele posteriormente levou para a empresa.

À primeira vista, as duas partes que compõem o livro parecem dois volumes em um. Um com viés acadêmico e outro com abordagem jornalística. Mas não são dois livros, são dois jeitos de tratar os dois momentos definidores da vida do editor, mantendo a configuração inversora e casual da sua história: o livro não foi pensado assim, mas aconteceu assim, com duas autoras cuidando de duas vertentes narrativas, que se unem pelo que há de positivo nas imperfeições humanas. A consequência dessa concatenação suplementar é que a obra de Teresa Sales e Goimar Dantas fala com emoção de uma vida e de uma obra seladas na confiança de quem está sempre pronto para reacontecer.

Com base na experiência de um sonhador em busca permanente de concretização dos seus sonhos, nota-se que a segunda parte depende da primeira, menos por sequência cronológica e mais por sincronicidade. Sem o alicerce erguido nas aventuras do menino e do jovem Cortez, dificilmente haveria o empresário de sucesso, transbordando senso de dever e amor pelo que faz. O livro aborda os feitos de José Cortez pela evocação das essências fundantes do seu caráter, condição que resultou na concretude lastreada pelo desejo de realização à procura de fazer acontecer.

Na primeira parte, a vida do biografado, mais voltada para a relação da infância e da sobrevivência, momento de preparação da sua alteridade, é contada e bem contada por quem estuda e conhece profundamente o ambiente onde ele se formou para a vida, a professora Teresa Sales. Socióloga, presidente do Conselho Diretor do Centro Josué de Castro, pesquisadora e autora de livros que abordam as temáticas relativas às transformações no mundo rural nordestino e em migrações internas brasileiras, Teresa Sales oferece mais do que uma biografia, ela presenteia o leitor com um retrato sociocultural, econômico e histórico do sertão. Com olhar atento, ela faz uma síntese nordestina em recorte que concilia o povoamento do semiárido, as relações no campo, o etos da família camponesa, a questão fundiária, a escravidão e as migrações. Ao mesmo tempo, mostra um José Cortez de alma tapuia, em um trançado de infância que diz muito da infância do Brasil.

Na segunda parte, a maneira mais solta de condução do texto foca José Cortez em sua fase mais madura, depois que foi expulso da Marinha, momento em que enfrentou os desafios de se estabelecer na capital paulista e passou a acolher familiares para trabalhar e estudar. Goimar Dantas, que é jornalista potiguar radicada em São Paulo, onde realiza trabalhos de valorização da memória da cidade, coloca a saga de José Cortez em um "guarda-garoa" modulado por referências culturais: recorre ao "E agora, José?" de Drummond, ao rapaz latino-americano de Belchior, à máxima de que "um país se faz com homens e livros", de Monteiro Lobato, ao grito de "um por todos e todos por um" dos três mosqueteiros de Alexandre Dumas, ao "Grande Sertão", de Guimarães Rosa, ao "Xote das meninas", de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, e alusões a J.D. Salinger, James Dean, Fred Astaire, Menudos e Pedro Almodóvar.

Ambas as partes, com seus diferentes sotaques estilísticos, unem-se no ponto de coesão e coerência da personalidade do biografado: a coragem de existir nos sonhos, nos gestos e nas ações. Da soma das duas partes, resultam linguagens complementares que se projetam em uma obra inteira e disruptiva. Quer na primeira, quer na segunda parte, José Cortez aparece sempre fiel ao seu espírito criativo e à busca de realização, como um hábil mediador na cena cultural entre autores e leitores. Ele rompe com a linearidade dos modelos mentais dominantes, para contribuir com a inserção do Brasil como protagonista do mundo multipolar, pluriétnico e inclinado ao que chamo de social ambientalismo participativo.

O livro apresenta com curiosos fatos e depoimentos as circunstâncias que levaram José Cortez a ser um agitador de ideias, um cidadão orgânico, no desempenho do seu papel de editor, por meio do qual espalhou dedicação ao livro e à leitura, numa inusitada capacidade empreendedora. Cortez é um dos emblemas do livro no Brasil, uma pessoa com notável respeitabilidade, capaz de unir em si grande modéstia e muita determinação. Aprendeu a escala da liberdade de apreciação e a tecedura entre o universo do saber e do conhecimento, na cultura e na ciência. Sua biografia destaca o articulador de um fio condutor da educação, das ciências sociais e mais recentemente da literatura infantil.

No garimpo, descrito por Teresa na primeira parte do livro, José Cortez buscava minerais preciosos, tempo em que - ele me disse certa vez - costumava comer preá assado embaixo dos matos para se proteger do sol inclemente. Na editora, parte reportada por Goimar Dantas, ele aparece garimpando e publicando bons originais, rodeado por uma equipe de apaixonados por livros que, sem pretensões professorais, educam e instigam pensar, movidos pelo pendor democrático do saber e do conhecimento, e pela convicção de que ler é um ato de aspiração.

Sempre respondendo com postura afirmativa a cada momento brasileiro, José Cortez está entre os atores culturais de maior relevância das últimas décadas.

Como formador de intelectuais e preparador de cidadãos, passou a ocupar lugar de destaque na galeria dos grandes editores brasileiros. Financiou o próprio sonho com trabalho duro e em condições precárias de realismo social, para fazer educação no Brasil. Sem ele e sem os autores que vem editando ao longo dos anos, certamente muitos estudiosos e educadores não seriam os mesmos. Por tudo isso, "A saga de um sonhador" é um livro que merece ser ouvido como se ouve a quem verdadeiramente tem algo a contar.